Cinzas

23/09/2021

Cinzas

Por Iriam Starling

Minas está em chamas. Ah, não! Não são as chamas revolucionárias de um povo sofrido que se rebela, que ousa lutar contra seu opressor. Também não são as chamas do amor juvenil, da paixão entre amantes, capaz de romper barreiras, de alçar voos e de arriscar a liberdade.

Minas está ardendo com o fogo da ignorância. Minas queima nas chamas do retrocesso e da obscuridade.

Primavera regada a cinzas. “Nossas florestas estão preservadas”, disse o chefe da Nação em seu discurso na ONU. Em parte, ele está certo. Estão preservadas nas memórias daqueles que tiveram a sorte de conhecê-las de perto, em toda sua plenitude. Mas não posso dizer que estão preservadas nem em nossos livros, pois está ressurgindo a moda de queimá-los. Falta pouco para lançarem às chamas com eles nossos professores, cientistas e sábios.

Chegamos ao absurdo de ver a compra de livros por agentes culturais, com os recursos da Lei Aldir Blanc, ser proibida. E logo a Lei Aldir Blanc, feita para tentar preservar nossas pequenas empresas e nossos agentes culturais em meio à pandemia em que ainda nos encontramos. Esses parcos recursos deixaram apenas uma vontade de sobreviver, apesar de tudo.

E assim, rompeu a primavera, sem a chuva benfazeja, que faz brotar o verde. O céu fosco, num misto de cinza, vermelho e amarelo, no lugar do azul brilhante. Veio com ela uma ventania que a tudo destrói e deixa apenas as nossas lágrimas a regar a terra ressequida.

Meu coração deveria estar em festa com a estação da renovação rompendo a madrugada, mas está em luto. Luto pelas florestas. Luto pelos nossos museus, nossas memórias. Luto pelas vidas ceifadas pela peste virulenta do ódio. Luto com minhas armas: meu parco conhecimento das coisas maravilhosas desse nosso ainda lindo planeta, produzindo livros. Infelizmente não alcanço a velocidade com que são queimados, mas, quem sabe, alcanço leitores. Leitores que contagiam outros com o vírus das letras e isso se transforma numa nova pandemia. Uma pandemia que aniquilará o obscurantismo, a ignorância, o ódio… Resta a esperança.

Precisamos de luz. Mas não a luz das chamas que a tudo consome e mais calor produz que brilho verdadeiro. Precisamos da luz do conhecimento que se transforma em sabedoria; precisamos da luz da cultura, que traz alegria; precisamos da luz dos leitores, que nos traz vida.

Sigo respirando cinzas, plantando livros, cultivando letras. Quem sabe, um dia, com a soma de muitos leitores, passaremos a respirar ar puro, a cultivar flores e a ver as florestas renascerem.

Autora: Médica Cirurgiã Geral Iriam Gomes Starling é também graduada em Belas Artes. Trabalha profissionalmente com ilustração médica desde 1985. O primeiro livro ilustrado foi Obstetrícia, do prof. Mário Correa, 1988. Hoje possui milhares de ilustrações publicadas em livros didáticos e periódicos.

Imagem de LEEROY Agency por Pixabay 

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