Esquecendo O Plural

16/02/2021

Esquecendo O Plural

Por Iriam Starling

“Nós vai ou nós fica?” Para quem é minimamente instruído, esta é uma frase que até dói nos ouvidos, mas outras como “A maioria das pessoas não gostam de ler” ou “Os policiais não deteram os assaltantes” são aceitas como corretas. Uma rápida corrida d’olhos nas mensagens das redes sociais revela que o “Eu” ganha de longe do “Nós” em frequência. Isso é apenas a ponta do iceberg de uma sociedade capitalista extremada, onde o singular consome mais que o plural. Estimular o ego (…ismo, …centrismo…) é muito bom para a saúde financeira das indústrias.

Foto: Divulgação / Portal Educação Amazonas

Muitas comunidades indígenas, embora um tanto “invadidas” pela cultura do branco ocidental, ainda conservam um jeito tradicional de educar suas crianças, uma preocupação de toda a aldeia. Fiquei encantada com as informações da antropóloga brasileira, Camila Gauditano de Cerqueira, publicadas numa entrevista à BBC Brasil. Ela descreve um pouco de suas observações sobre a educação infantil no Parque Indígena do Xingu, no nordeste do Mato Grosso, na porção sul da Amazônia brasileira, das quais destaco alguns trechos:

As mães, enquanto seus filhos são bebês, não saem para trabalhar na roça. “A família faz esse trabalho por ela”. Às vezes, até o marido tem restrições para ir à roça quando tem bebê pequeno.”

Mais tarde, se a mãe vai à roça, tem a ajuda dos parentes. “A criança pequena fica com a tia ou avó.”

“Já vi criança de três anos sendo amamentada. Lá é livre demanda, quer mamar, mama. Na mãe, na tia, na avó… às vezes, a mãe saiu, mas a avó está ali e tem leite. Ela dá. É normal.”

“A partir de três anos, já são bem mais independentes em relação à mãe (do que as da cidade). Elas têm circulação livre na aldeia, mas nunca estão sozinhas. Estão sempre acompanhadas de crianças do mesmo tamanho ou maiores.”

“Na nossa sociedade você não tem esse apoio coletivo que existe no convívio de aldeia. Não partilhamos a educação de nossos filhos com a comunidade.”

Texto acima: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41119694

Para nós, civilizados, prevalece a cultura do: “Quem pariu Mateus que o balance”. Não é fácil cuidar de crianças, especialmente as mais saudáveis e inteligentes. O resultado? Mães neuróticas, famílias desestruturadas, casamentos desfeitos, empregos perdidos…

Eu tive a sorte de ter tido ótimos professores no Ensino Fundamental. Eles me deram bases sólidas para continuar meus estudos nos segundo e terceiro graus. Sou muito grata a eles, pois, além dessa base sólida, me influenciaram a definir minha carreira profissional. O entusiasmo com que alguns professores davam aula e a percepção de sua real preocupação pelos seus alunos estão vivos em minha memória. E saibam que estudei em escolas públicas. Naquela época, as escolas particulares eram muito caras, principalmente no interior, e sinônimo de incompetência do aluno. Eram chamadas “Escolas Pagou-Passou”.

Ao longo de minha vida assisti a desconstrução do ensino público que não acompanhou o ritmo alucinante de crescimento da população brasileira e nem o avanço estratosférico da tecnologia. Chega a ser insano querer que crianças, cheias de energia, nascidas num mundo globalizado e informatizado, fiquem quietas assistindo uma aula expositiva. As mais agitadas são taxadas de portadoras de TDAH (transtorno de déficit de atenção com hiperatividade). Enquanto médica, sinto-me à vontade para dizer que a medicalização dessas crianças é um verdadeiro crime contra elas próprias e contra a nação. Se bem trabalhadas, se tornariam brilhantes no que quer que escolhessem como profissão, mas, ao invés disso, são imbecilizadas, transformadas em dependentes de drogas “lícitas” e estigmatizadas.

A pandemia contribuiu para escancarar os graves problemas que nossos alunos e professores enfrentam: ambiente insalubre, falta de equipamentos, especialmente na área de informática, falta de conexão com internet, professores mal preparados para lidar com a “adversidade” e com a “diversidade”, analfabetos tecnológicos, entre outros. Muitos pais mandam seus filhos para a escola não para aprenderem, mas terem um lugar para ficarem e comerem enquanto eles trabalham. É triste, mas é nossa realidade. E é desnecessário dizer que as pessoas pretas e indígenas estão entre os maiores prejudicados. A reserva de cotas nas universidades, embora esteja ajudando a equilibrar um pouco o acesso dessas pessoas ao ensino superior, traz em seu bojo um viés cruel: os profissionais pretos e indígenas são discriminados como “inferiores”. Claro que isso mascara o real motivo: o racismo. Tal problema não ocorreria com tamanha desproporção se tivéssemos escolas públicas de boa qualidade desde o fundamental.

Tenho visto na imprensa e nas redes sociais professores, sindicalistas, gestores públicos e pais se degladiarem sobre a volta ou não do ensino presencial nas escolas. Enquanto isso, nossas crianças ficam à mercê da sorte, sem suporte, com alimentação precária, sujeitas a serem aliciadas pelos traficantes de drogas, estupradas, espancadas e mortas. Enfatizo aqui a especial vulnerabilidade das meninas pretas, as que mais sofrem em meio a esta selva de asfalto e concreto.

Ouso dizer que bons professores e boas escolas salvam mais vidas que os médicos e enfermeiros. Desejo intensamente que os civilizados se mirem no exemplo dos selvagens. Vamos recuperar o plural.

Autora: Médica Cirurgiã Geral Iriam Gomes Starling é também graduada em Belas Artes. Trabalha profissionalmente com ilustração médica desde 1985. O primeiro livro ilustrado foi Obstetrícia, do prof. Mário Correa, 1988. Hoje possui milhares de ilustrações publicadas em livros didáticos e periódicos.

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