Obstetra, parteira e doula: afinal, o que é parto normal?
Enquanto médica e funcionária pública, tenho acompanhado discussões acaloradas em defesa do parto normal. Casas de parto, parteiras, doulas e partos domiciliares são defendidos ardorosamente por muitos políticos, amparados por estatísticas “estarrecedoras” de partos cesáreos no Brasil. Virou moda o achincalhamento de médicos, especialmente dos obstetras que defendem o parto hospitalar, feito por médicos e não parteiras. Episiotomia virou sinônimo de tortura e o toque vaginal, para acompanhar a dilatação do colo do útero, virou assédio.
Mas vem aí a pergunta que não quer calar: o que é parto normal?
Normal é o que é comum, natural, mas se nos miramos na natureza, o normal é a fêmea ter seu parto sozinha, e se algo dá errado, morrem mãe e filhote. Sob essa ótica, interferir no parto não é normal, pois seria interferir com as leis da natureza, ou seja, com a seleção natural.
Mas não queremos que nossos rebentos e nossas mães morram, não é? Por isso, médicos apaixonados pela vida resolveram interferir nessa equação, na tentativa de diminuir as perdas maternas e infantis. Ao longo dos séculos, depois de muitas mortes e pesquisas, elucidou-se muitas das causas de óbitos devidas aos partos. Uma coisa posso lhes garantir: todos querem o melhor para si e para seus filhos. Então, se o melhor for um parto assistido por um médico obstetra, num ambiente asséptico, com uma equipe pronta para interferir ao menor problema, todos vão querer isso, não é? A lógica me faz crer que sim, mas todo esse aparato — um centro obstétrico, uma equipe com médico obstetra, pediatra e enfermeira — é caro, muito caro. Além da diferença de salários entre um médico obstetra e uma parteira, formar um médico custa 6 anos em um curso de graduação e mais quatro em pós-graduação. Estender esses benefícios à população dilapida os cofres públicos.
A brilhante solução encontrada pelos políticos não foi o uso racional dos recursos, mas o convencimento da população de que o parto domiciliar, feito por parteira é que é normal e é o melhor para ela. Vale tudo para conseguir essa proeza: enaltecer o trabalho das parteiras (parto humanizado) e difamar os obstetras, especialmente aqueles mais apaixonados pela sua profissão. Mas esses mesmos políticos vão procurar os melhores médicos obstetras para suas esposas e filhas, devidamente assistidas em um hospital particular, cercadas de tecnologia de ponta. É a assistência de primeira para cidadãos de primeira classe e assistência de segunda para cidadão de segunda classe.
É claro que há médicos bons e ruins, e que há um exagero em partos cesáreas no Brasil, mas a melhor forma de se corrigir eventuais problemas na assistência médica ao cidadão, certamente, não é suprimindo o médico.
Sou daquelas pessoas movidas pela paixão, formada em Medicina e Belas Artes. Me perguntam sempre o que uma coisa tem a ver com a outra. Eu digo: tudo. A arte é a celebração da vida, assim como a medicina, cada uma ao seu modo. Em tempos de guerra, a arte é esquecida e a medicina torna-se primordial e em tempos de paz a arte é valorizada e a medicina relegada a um segundo plano. Mas sequer podemos dizer que estamos em tempos de paz ou em tempos de guerra. O que está acontecendo com a nossa sociedade?
A vida hoje não é o bem mais precioso do planeta, mas o dinheiro. A família foi desestruturada, o amor banalizado e o ensino deteriorado. Num país em que impera a corrupção e que ter um carro é mais importante do que pagar um médico ou um professor pode-se esperar de tudo.
Quanto a mim, escolhi ter meu filho em um bom hospital, assistida por um obstetra e com a presença de um pediatra na sala de parto. E sim, foi cesáreo, não por que escolhi, mas por que meu filho estava grande demais. Nasceu com quatro quilos e meio e cinquenta e quatro centímetros a uma semana antes da provável data do parto. Hoje é um belo rapaz de um metro e noventa de altura.
Meu terno abraço a todos os médicos obstetras que ainda acreditam que a vida é o que mais importa.
Autora: Médica Cirurgiã Geral Iriam Gomes Starling é também graduada em Belas Artes. Trabalha profissionalmente com ilustração médica desde 1985. O primeiro livro ilustrado foi Obstetrícia, do prof. Mário Correa, 1988. Hoje possui milhares de ilustrações publicadas em livros didáticos e periódicos.
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