Povos nativos pedem que museus europeus “devolvam” seus ancestrais

13/05/2019

Povos nativos pedem que museus europeus “devolvam” seus ancestrais

Patrimônios de culturas de várias partes do mundo acabaram no Reino Unido e na França, mas agora elas querem tudo de volta. Vão conseguir?

 Em novembro de 2011, Ned David viajou 13 mil km de sua casa, Thursday Island, na Austrália, para o Museu de História Natural de Londres, no Reino Unido. Sua missão era voltar para a terra natal com os ossos dos seus ancestrais. O material incluía crânios, uma mandíbula e outros fragmentos do arquipélago de Torres, coletado pelos europeus no século 19 para pesquisas científicas e por curiosidade antropológica.

O museu concordou que os restos mortais deveriam ser entregues de volta à sua “comunidade de origem” e, então, David regressou a Austrália com os ossos. Antes, uma cerimônia privada foi feita na porta do museu. “Vai demorar muito tempo para compreendermos o significado do que fizemos aqui”, disse ao jornal The Times na época.

Ele ainda contou que a busca pelos ossos foi feita depois de uma consulta à sua comunidade sobre partes de seus ancestrais que estavam em coleções de museus espalhadas sobre o mundo — a maioria delas em Londres. “Foi uma das raras vezes em que, nós tivemos uma concordância total uns com os outros”, revelou David, que preside o conselho comunal de Torres.

“Como você se sentiria sabendo que um dos seus familiares está em um lugar estranho e, mais importante, não está enterrados no lugar correto? Isso tem um impacto para a psique de um grupo”, completou.

Os nativos de Torres não estão sozinhos nesta campanha de reclamar os restos humanos de seus ancestrais aos museus europeus. Em março, mais de 150 anos depois que um soldado britânico cortou dois tufos de cabelo do imperador etíope Tewodros II e os enviou ao National Army Museum, em Londres, eles retornaram ao país africano por exigência de Adis Abeba. Poucos dias depois, o rei da Noruega, Haroldo V, assinou um acordo com o governo britânico para repatriar milhares de artefatos, incluindo ossadas dos povos Rapa Nui da Ilha de Páscoa, hoje território chileno.

No mês passado, instituições alemãs transferiram a maior quantidade de artefatos de seus museus da história, com peças saindo de Munique, Berlim e Stuttgart com direção a Austrália. Foi o produto de uma declaração conjunta de devolução de coleções coloniais feita pelos ministros de todos os 16 estados da Alemanha, que concordaram que o material humano “não pertence aos vidros dos museus”.

Museu de História Natural de Londres. Crédito: divulgação

O Rijksmuseum, de Amsterdã, planeja solucionar o espólio colonial em Sri Lanka e na Indonésia devolvendo para esses países algumas peças que foram roubadas ou saqueadas há séculos. O ajuste de contas do museu holandês se soma aos planos da França, que no final do ano passado abriu a possibilidade de entregar dezenas de peças de arte africanas que hoje integram mostras de diferentes museus do país. Se o projeto for adiante, nações como Mali, Benin, Nigéria, Senegal, Etiópia e Camarões receberão obras — eles lideram um documento que pede tais restituições.

Essas mudanças representam o lado mais fácil da questão de restituição. Recentemente, o presidente da Grécia, Prokopis Pavlopoulos, chamou o British Museum de “prisão obscura” por guardar os mármores do Panteão de Atenas como troféus — obras de arte e artefatos tradicionalmente geram grandes controvérsias entre os dois países. Na última semana de abril, o secretário de cultura britânico, Jeremy Wright, descartou qualquer mudança na lei do país para permitir que os museus nacionais entreguem seus objetos aos países de origem.

Em contraste, o caso moral de devolver partes de corpos, muitas delas saqueadas sem levar em conta os sentimentos dos povos nativos que, em épocas passadas, eram julgados como “menos humanos” que os europeus, é difícil de discutir. Elas estão frequentemente guardadas fora do acesso público e se limitam ao “interesse científico”. Uma escultura de dois mil anos que atrai milhares de pessoas e rende pacotes de viagens lucrativos aos museus britânicos ou franceses dificilmente deixaria os edifícios onde estão hoje.

A especialista em patrimônio Sarah Morton, da Universidade de Bath Spa, na Inglaterra, afirmou ao jornal The Guardian que a questão da restituição está sendo revista no país. “Há mais reflexões sobre as coleções a partir de como elas foram adquiridas e em que circunstâncias isso aconteceu”, disse. “As pessoas estão observando mais as fundações coloniais dos museus e desafiando-as”, completou.

O Pitt Rivers Museum, em Oxford, é um exemplo: no ano passado, ele sediou uma conferência anual de etnógrafos cujo tema foi “Descolonizando o museu na prática”. “Como nós devemos trabalhar com essas comunidades cujas peças ou restos mortais estão na Europa? Eles provavelmente os querem de volta ou talvez fiquem felizes que estejam em um museu. Podem até trabalhar com ele. Mas essa posição de ‘nós conseguimos essas coisas, elas são nossas e nós podemos fazer o que quisermos com elas’ está começando a ficar insustentável”, agregou Borton.

Em 2005, o arqueólogo John Russell estimou que, entre março de 2003 e o início daquele ano, de 400 a 600 mil antiguidades tinham sido saqueadas do Iraque durante o conflito entre forças europeias aliadas aos Estados Unidos e o exército local — juntas, elas valiam entre US$ 10 milhões e 20 milhões. Episódios como esse são, para o arqueólogo britânico Sam Hardy, uma perpetuação da violência colonial.

A visão da restituição é sustentada também pela diretora-executiva dos museus nacionais de Liverpool, Janet Dugdale — reunidos, eles possuem cerca de 40 mil objetos de importância etnográfica, incluindo 10 mil da África e seis mil da Oceania. “Trinta anos atrás, os museus provavelmente estavam dizendo que eram suas coleções e que era importante que elas estivessem ali, porque tinham importância científica”.

Ela ainda agrega que os museus europeus temem um efeito dominó: “O medo é: se você deixar uma coisa ir embora, isso significa que tudo deve ir também? E claro que não será assim.” O processo de decidir o que será demandado e reunir apoio em torno da causa é um trabalho imenso para as comunidades nativas e mesmo para os governos nacionais, e por isso uma torrente de pedidos é improvável. Pedidos de restituição são, de qualquer forma, parte dos desafios atuais dos museus.

A Espanha também enfrenta um conflito parecido — apesar de ter menos obras espoliadas em seus museus: a Colômbia reclama a volta do tesouro Quimbaya, um grupo de objetos pré-colombianos expostos no Museu da América, em Madri. Ainda que tenha sido um presente do então presidente colombiano, Carlos Holguín, à rainha María Cristina, em 1893, o país sul-americano argumenta que a atitude do ex-governante foi ilegal, porque não pediu a autorização do Parlamento.

A questão não é tão recente: em 2000, os primeiros-ministros do Reino Unido e da Austrália, Tony Blair e John Howard, assinaram um tratado conjunto pedindo o aumento de repatriações de artefatos dos museus do país europeu para a nação oceânica — muitos deles restos humanos de povos indígenas. “Fazendo isso, os governos reconhecem a conexão especial que os nativos têm com seus restos ancestrais, particularmente onde estão ainda descendentes vivos”, dizia um trecho do documento.

No entanto, o acordo entre os dois governantes esqueceu de algo importante. A lei britânica proibia que museus nacionais entregassem qualquer parte de suas coleções, exceto em circunstâncias muito específicas. A mudança veio apenas com um escândalo no Alder Hey Hospital, em Liverpool, que tinha guardado órgãos de crianças mortas sem o consentimento dos seus pais — o que fez surgir uma nova legislação.

Em 2004, foi aprovado o Human Tissue Act, que incluía uma cláusula em que os museus britânicos tinham o poder de transferir restos humanos com menos de mil anos para outros lugares fora de suas coleções em casos em que “parecesse apropriado fazê-lo”. Foi essa lei que permitiu que o Natural History Museum devolvesse os ossos de David — em 2009, o World Museum, em Liverpool, entregou uma caveira do povo Ngarrindjeri, do sul da Austrália, aos seus descendentes.

Além da Grécia, países como Iraque, Chile, Egito e Turquia já pediram que o British Museum restitua peças de suas culturas antigas que foram roubadas. A avalanche de pedidos é tão grande que a administração do museu londrino decidiu abrir uma série de reuniões mensais em que explica como recebeu muitas de suas obras — operando desde outubro do ano passado, a ideia é mostrar como a maior parte do acervo não é fruto de roubo.

A Turquia, porém, tem levado o assunto de forma mais séria e há mais tempo, quando passou a pedir o retorno das esfinges de Hattusa, a antiga capital do Império Hitita, ao governo alemão — as peças estão em um dos museus de Berlim. Recentemente, o governo turco criou uma comissão que também pediu a devolução de obras que hoje atraem multidões para mostras em Nova York, Los Angeles e Paris. No processo de convencimento, o principal critério é mostrar que tem condições de manter as obras em segurança — exatamente o argumento favorável aos grandes museus da Europa.

Grande abraço!

Press Office

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