Público belo horizontino tem oportunidade para conhecer de perto trabalho de Wallace Pato, importante nome da nova cena das artes plásticas do país
Dignidade como Utopia segue em cartaz na Mitre Galeria até 16 de setembro
Wallace Pato é artista autodidata, nascido e criado em Ramos, onde mantém seu ateliê. O carioca, que teve obras expostas em Inhotim e no Museu de Arte do Rio, está em cartaz com sua primeira individual em Belo Horizonte, “Dignidade como Utopia” na Mitre Galeria.
As obras que compõem a exposição partem de uma pesquisa que Wallace Pato vem fazendo há alguns anos a partir de andanças pelo Brasil e que tem como base a junção do sertão com o mar. Enquanto figura de linguagem, essa convergência de opostos parte do princípio de que a dignidade deixará de ser uma utopia.
“Há nas pinturas uma atmosfera de esperança, uma vontade de acontecimento, uma iminência que pode ser vista como uma espécie de preparação para o momento em que a dignidade passa a ser realidade” explica Rodrigo Mitre, um dos sócios da galeria. “Preparação essa que a gente faz o tempo inteiro, que a gente vive a vida toda. A gente se preparando para algo que pode acontecer. E a gente vai criando essa expectativa, essa esperança que é um combustível pra vida”, completa Pato.
A esperança, todavia, nunca chega, sempre passa pelo horizonte. “O uso dessa frase O Sertão vai virar Mar, eu uso pensando a classe pobre e preta do país longe dos centros, do centro até mesmo de atenção das coisas básicas. E o mar seria a dignidade chegando nessa margem, nessa grande margem onde habita esse povo”, completa o artista.
PINTURA COMO CHAMADO – por Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos
texto curatorial
O termo “necessidade básica” nunca foi um ponto pacífico no campo das ciências sociais ou econômicas: afinal, como determinar a um outro aquilo que deve satisfazê-lo minimamente? Sonhar não seria tão básico quanto ter na mesa um prato de feijão? Ademais, a quem sonhar pertence? Quem são as pessoas a quem são negadas as necessidades básicas que conformam o onírico? E quanto, desse necessário indefinido, é bastante ou suficiente?
“Dignidade não devia ser utopia”, afirma Wallace Pato, que, caminhando por margens litorâneas e sertanejas do Brasil – olhando, conversando, ouvindo, pintando –, oferece, a partir de seu trabalho como artista, uma ideia desse básico que qualquer pessoa precisa: na sua visada, feijão, escola, salário justo e sonho são uma mesma coisa; compartilham da mesma matéria de que todas as vidas são feitas. Mas dizer que dignidade não devia ser utopia é também reconhecer que ela ainda não é coisa alcançada por toda a gente. Utopia, afinal, é um conceito que remete a um deslocamento e, também, a um devir. A um lugar que não é aquele onde se vive e a um tempo que não é o de agora, marcados que esses são por insatisfações e recusas. Utopia é, assim, projeção de um território e de um momento nos quais desejos e direitos são de algum modo satisfeitos e observados. É um lugar e um tempo de apaziguamento e de regozijo imaginados a partir de um ponto de vista particular: desde um indivíduo ou uma comunidade que projetam, em oposição a um presente que não os satisfaz, um futuro em que serão reparados por carências e danos. Quem tem acesso precário ou mesmo vetado a comida, saúde, educação, segurança e moradia concebe um lugar almejado que, por sua condição de vida, certamente difere daquele imaginado por quem não padece da ausência do que de mais básico a vida requer.
O pensamento utópico é, portanto, essencialmente político. Ele enuncia desigualdades fundantes e definidoras de um contexto social específico, anunciando a ideia de um mundo outro, organizado de forma mais paritária e justa. Ele é feito de fabulações do que não existe, mas que pode existir ainda. Fabulações que, no trabalho de Wallace Pato, são feitas de pintura: por meio de formas, cores, texturas, criação de paisagens e personagens, o artista apresenta movimentos de corpos negros desejantes de futuro, fraturando, apenas por tal motivo, consensos antigos que somente os concebem em situações de pobreza ou sofrimento. O pensamento utópico é espaço de confronto e de disputas.
Não há nessas cenas, contudo, representação de riqueza de coisas como sugestão de acesso a uma vida plena. Ao contrário, há quase ausência, nas superfícies pintadas, de indícios de posses tantas que poderiam marcar a superação de uma situação de falta longa. O que existe nelas é a presença altiva de pessoas negras desentranhadas das sujeições históricas que foram, por incontáveis vezes, reforçadas em representações visuais hegemônicas do Brasil, como se não houvesse outras maneiras de imaginá-las. Não que a posse material não seja elemento central da imaginação utópica, em particular o direito à terra e a tudo o que provém dela. A violência colonial, afinal, foi movida pela expropriação de territórios de povos indígenas e por sua exploração através de força de trabalho negra escravizada. É apenas que as pinturas de Wallace Pato já pressupõem essa retomada, sugerindo a presença simultaneamente evidente e difusa, nesse mundo que virá, daquilo que nomeia como dignidade – termo que resume a conquista de uma disputa imparável. Suas pinturas são um chamado à construção do que está nelas representado.
São pinturas que traduzem, nas pinceladas curtas que constroem traços agitados, aquilo que tanto se espera da população pobre – e em sua maioria preta – do Brasil: a crença, a insistência, a perseverança. Mas que de imediato também destituem, desses atributos, quaisquer marcas de “naturalidade” ou romantização, evidenciando os modos como o artista os torce e tensiona. São pinturas que interrogam, através de meios que lhes são próprios, até quando se deve, uma vez que se disponha dos instrumentos de transformar utopia em fato, esperar pelo alcance da vida digna. Que sugerem que o grande evento aguardado – a chegada da dignidade – precisa com urgência desocupar o lugar de uma expectativa utópica, tornando-se presente vivenciado. A dignidade, afinal, não é algo apenas a ser buscado; a dignidade, em suas dimensões concretas e simbólicas, é um pressuposto que precisa ser declarado como tal, sendo por isso direito de toda a gente.
São representações desse movimento – procura e chegada ao mesmo tempo – que Wallace Pato oferece em seus trabalhos: seja na imagem da celebração e da dança à beira do açude, na pintura do menino que descansa e sonha em meio ao sertão ou em outra que exibe uma cena de trabalho. Estejam sozinhas ou em grupos, as pessoas retratadas parecem sempre situar-se em relação a outras tantas, evocando uma existência comunitária. São cenas imaginadas sempre ao ar livre e abertas ao que há à volta, eludindo qualquer sentimento de aprisionamento daqueles corpos. A paleta de cores terrosa de que o artista faz uso os aproxima, ademais, do próprio chão que pisam (mesmo quando esse chão é água), da vegetação que os cerca ou protege e mesmo das nuvens por vezes baixas que os abrigam nas paisagens pintadas. Aqueles lugares não somente lhes pertencem, mas deles essas pessoas são também parte. Por fim, o cromatismo rebaixado das pinturas esbarra na vibração factual das imagens criadas, ressoando, em quem as olha, sensações simultâneas de calma e agitação, de placidez e redemoinho.
São cenas que remetem a obras de artistas do passado que, tal como faz Wallace Pato agora, também enquadraram dignamente as margens, fossem elas as do sertão ou do mar, desse país: Maria Auxiliadora, Heitor dos Prazeres, entre outras e outros. Artistas de quem Wallace Pato descende em termos éticos e, também, estéticos, posto que, a despeito de quaisquer diferenças formais em suas obras, todos partilham o imperativo de dar a ver e de construir (em formas, cores, traços) o que foi e é invisibilizado ou desfeito; de mostrar que a imaginação transformada em pintura permite fazer do sonho a antecipação do que está por vir. De desmanchar utopias, transformando-as em coisas vividas.
Há entre essas gerações, contudo, também diferenças grandes. Ainda jovem, Wallace Pato já logra inserir e legitimar (na companhia de outros e outras artistas que lhe são contemporâneos), em um campo marcado pelo racismo que estrutura o Brasil desde sua invenção, cenas que antecipam uma existência digna para aqueles que viveram e vivem à margem no país. Algo que não foi possível para muitos artistas visuais negros que o antecederam, frequentemente relegados a categorias tratadas por muitos como menores (arte primitiva, arte naif), quando não apenas ignorados por instituições e crítica. O vigor e visibilidade da produção de artistas negros (e também indígenas) no Brasil de agora não são somente, contudo, índices de ganhos graduais em disputas longas e acirradas; são também chão firme para uma recepção nova daqueles artistas do passado; o que os faz, paradoxalmente, também descendentes de Wallace Pato. Os tempos se confundem quando o pensamento utópico logra dissolver-se na atualidade. Quando dignidade não pode mais ser somente algo que se aguarda chegar, e sim inadiável demanda feita no agora.
Sobre Wallace Pato
Pato é um artista autodidata que iniciou seu trabalho há cerca de sete anos conectando as paisagens do Nordeste com as do imaginário carioca, em um exercício de crônica, pintando as paredes dessas ruas. Sua pintura vernacular conta histórias que ilustram referências da cultura brasileira. Essas narrações reúnem de festividades a crianças nas ruas, as cenas carnavalescas, as refeições e até os funerais. O trabalho do artista tem o respeito pela dissolução dos detalhes, compondo a construção da imagem com histórias familiares, nas palavras de Wallace: “Eu pinto sobre o subúrbio, sobre o Brasil. Tenho vários objetivos, mas acho que o maior deles é ser porta-voz de quem nunca foi ouvido. Gente que é gigante tem muita força, carrega uma história enorme, muito nas costas e nunca tiveram a chance de falar, ou quando o fizeram, foram ofuscados”.
Serviço
Mitre Galeria
Dignidade como Utopia – individual Wallace Pato
Abertura: 04 de agosto de 2023, das 19h às 23h
Encerramento: 16 de setembro de 2023
Rua Tenente Brito Melo, 1217, Barro Preto
Belo Horizonte/MG
Terça à sexta: 10h às 19h
Sábado: 10h às 16h
Entrada Gratuita
Sobre a Mitre
Belo Horizonte, Joanesburgo, Cidade do Cabo, São Paulo, Nova York, Liverpool. A primeira metade do ano foi intensa para a Mitre Galeria, que consolidou seu espaço não só como uma das principais galerias de Belo Horizonte, mas também do país.
2023 começou com uma mudança de nome e posicionamento. Antes Periscópio, a Mitre inaugurou duas exposições na galeria no Bairro Preto, a primeira, coletiva MAA, uma bela síntese de sua nova proposta. Já a segunda, foi com o artista sul africano Jabulani, em uma parceria com a galeria Goodman Gallery, da Cidade do Cabo.
Depois de uma feliz participação na SP Arte, fez história em Nova York como a primeira galeria de Minas Gerais a participar da Frieze, uma das principais feiras de arte do mundo. Por lá, mostrou o trabalho do artista Marcos Siqueira que foi destaque em diversas publicações, entre elas o jornal New York Times. De Nova York para Liverpool, onde Isa do Rosário, artista representada pela galeria, integrou o time de artistas da 12ª edição da Liverpool Biennial of Contemporary Art, na Inglaterra.
O segundo semestre começou com boas notícias, com a artista mineira Luana Vitra, também representada pela galeria, sendo uma das ganhadoras do Prêmio Pipa e selecionada para a Bienal de SP.
Agosto segue em ritmo acelerado com a abertura da exposição individual do artista Wallace Pato na galeria em Belo Horizonte, no dia 04 (sexta-feira). A Mitre Galeria também está confirmada para a 2a edição do SP Arte – Rotas Brasileiras, que acontece de 30 de agosto a 03 de setembro na ARCA, em São Paulo.
O evento recebe galerias brasileiras apresentando projetos curados especialmente para a ocasião. A SP–Arte Rotas Brasileiras celebra a riqueza e diversidade da arte brasileira do passado, do presente e do futuro, trazendo perspectivas locais e globais, enraizadas na tradição e, ao mesmo tempo, dinâmicas.
Autoria: Renata Alves
Diretora
[email protected]